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Por onde o trem ainda passa

Na calmaria daquela manhã nublada, o trem deu seu primeiro sinal, misturado à espera de muitas pessoas na plataforma da estação da Rodoferroviária em Curitiba, no Paraná. Por onde o trem passa mostra que a vida requer sossego. É preciso esperar. A tênue linha amarela no chão avisa a distância e o cuidado que o passageiro precisa ter para esperar a manobra dos vagões na estação. Entre um vai e vem, o maquinista alinha a locomotiva. Nenhum passo em falso. Ainda não era hora do embarque.

Turmas escolares, casais, jovens ou aposentados: todos esperam o trem com saída marcada para as 8h30. Quando chega o momento de entrar nos vagões e a viagem têm seu início, o contraste entre uma metrópole e a lentidão do trem ficam evidentes: as grandes construções, os carros parados no semáforo. Mas o trem segue e a viagem que dura quatro horas os levará para Morretes, cidade que foi formada por um pequeno povoado com registros desde 1721 e se transformou em município, quando foi desmembrada de Antonina, em 1841. Atualmente, Morretes conta com aproximadamente 16 mil habitantes, abrigando muita história com seus casarões antigos. O ambiente da cidade traz calmaria e receptividade por seus moradores.

Seria muito tempo de espera? Enganam-se os apressados. Só o trem poderia proporcionar um tempo para realmente observar o que está ao redor: o grito da pausa que o cotidiano emite e que nem sempre é ouvido. O guia turístico avisa todos que logo a frente seria possível ver um prédio espelhado. Com suas câmeras, os turistas sentados ao lado direito do trem, registram um elo do passado com o presente: o trem torna-se uma estampa e ganha uma selfie.

Em tempos que pedem conexão a todo custo, a velocidade de 40 ou 50 km/h não parece um incômodo aos passageiros, que seguem interligados somente pelos vagões e conversas frente a frente. Não foi em vão que o jornal britânico The Guardian classificou o roteiro como um dos dez passeios de trem mais espetaculares do mundo . O trem sai da cidade com um balanço inconfundível e permite deixar as janelas abertas para quem está na classe dos vagões turísticos, trazendo uma inconfundível brisa que só é possível sentir estando lá, tornando-se um privilégio ainda maior para quem está ao lado esquerdo do vagão e pode apreciar as principais vistas do roteiro. Não é preciso pressa quando o caminho segue pelos trilhos. Depois de uma hora, a Mata Atlântica começa a mostrar seu esplendor na Serra do Mar, que há 32 anos foi considerada como patrimônio cultural e artístico do Paraná e abriga a maior parte da boa  conservação da Mata Atlântica, mas apenas com aproximadamente 7% do seu bioma original.

A ferrovia, uma das mais importantes da região, foi lançada em 1880 por Dom Pedro II e inaugurada em 1890, teve a contribuição de diversos trabalhadores, carregando história e uma engenharia impecável, que faz questionar a todo o momento: como foi possível construí-la em um tempo distante das máquinas e tecnologia? Esse questionamento também era um embate na época, pois muitas vezes desacreditaram da possibilidade da continuidade de uma obra tão arriscada. A prova de que foi possível permanece ali.

Ao observar as construções que beiram a linha, percebe-se que a ferrovia deixou sua marca arquitetônica nas casas que abrigavam os trabalhadores e engenheiros. Mesmo que abandonadas, além de voltar no tempo, mostra um pertencimento e o padrão da época, que guarda muita história.

Quantos passaram por ali? Remete-se à linha férrea a chegada do país, cenário de desenvolvimento, trabalho e conflitos. Enquanto o guia turístico conta todas as histórias que envolvem a construção da ferrovia, sua alegria em voltar ao mesmo lugar é nítida. Sobre todos os melhores pontos para fazer uma fotografia, ele brinca dizendo para preparar as câmeras, pois o trem não passa devagar na hora da fotografia. Essa “rapidez” briga com a velocidade do obturador da câmera fotográfica. É o momento em que todos desejariam que o lento trem fosse ainda mais devagar para que a paisagem fosse eternizada. Mas o trem não para, e o tempo não para – como cantava Cazuza.

Quanto tempo levou para que Barão do Serro Azul fosse reconhecido como um herói e não como um traidor? Sua cruz é possível ser vista do alto dos trilhos, ao km 65 da ferrovia. Naquele dia, não foi possível vê-la devido à neblina e chuva que tiveram início na metade do caminho. Foi possível senti-la. Barão do Serro Azul e seus companheiros foram mortos enquanto viajavam no trem. Ele foi visto como um traidor quando em 1894 - durante a Revolução Federalista, negociou com os revoltados que saqueariam e violentariam a cidade de Curitiba. Ao negociar o dinheiro com os revolucionários, Marechal Floriano Peixoto o acusou como traidor da pátria e, assim, Barão do Serro Azul foi preso. Eles pensavam que estavam indo para o Rio de Janeiro para serem julgados, mas foram jogados para fora do trem,após terem levado tiros. No entanto, a injustiça do passado somente foi reconhecida em 2008, com a Lei nº 11.863, fazendo com que o Barão do Serro Azul se tornasse o primeiro herói paranaense, registrado  no Livro de Aço dos Heróis da Pátria.

Não houve maior representação naquele momento para que fosse preciso imaginar aquela cena. Somente a voz do guia ao microfone se fez suficiente para a sensação de estar em um trem que flutuava pela Serra unido à perpetuidade de um nome, entre a escuridão dos treze túneis de pedra, um deles com meio quilômetro de extensão, e a luz que fica do outro lado. Ao entrar no túnel, o guia avisa que é possível gritar na janela. Com coragem, pode tornar-se algo terapêutico.

Entre uma das belezas mais apreciadas durante a viagem é a saída do túnel para o Viaduto do Carvalho. O trem corta a Mata Atlântica em uma sensação de flutuar, cumprindo o que a Serra Verde Express anuncia.

O santuário de Nossa Senhora do Cadeado já foi cenário até para o almoço da princesa Isabel e sua família um pouco antes da inauguração oficial. A beleza daquele tempo e o contraponto da liberdade que ela proporcionara a quem também construiu a linha férrea  marcam a história de um local, que hoje é cenário para os turistas mais aventureiros que fazem trilhas ou escaladas. 

A chegada em Morretes abriga uma antiga estação que está passando por reformas. O maquinista prepara a chegada, entre a pressa dos passageiros e os ônibus ou vans que os aguardam, mas é preciso descer na plataforma. Uma cidade acolhedora que é conhecida pelo típico prato do barreado, cachaça especial e diversos doces de banana. Os convites para os restaurantes são feitos na rua por simpáticos donos ou representantes dos estabelecimentos. A cidade, que abriga 15 mil habitantes, também oferece artesanatos e uma viagem no tempo com as antigas construções.

O trem e o tempo fazem um embate entre a espera e a pressa, o antigo e o novo. Há muita coisa para preservar. A memória ainda se faz a melhor opção quando  a fotografia não faz voltar o tempo. Viajar no trem está longe da ansiedade de chegar ao destino, pois faz parte de uma memória viva que ultrapassa as gerações fazendo possível ver, ouvir e sentir a história.

O passeio atrai turistas do Brasil e do Mundo - O que essa viagem significou pra mim?
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