top of page

O trabalho

Entre as dificuldades e os desafios do início e as saudades dos tempos da ferrovia, os ex-ferroviários contam suas memórias, que apesar do longo tempo passado continuam vivas em suas lembranças e são motivos de orgulho.

Para que o trem seguisse seu caminho, eram necessários muitos trabalhadores. Eles faziam parte da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima – RFFSA, que foi responsável pela ferrovia desde 1957 até 1999, momento que foi iniciada a sua liquidação, sendo extinta oficialmente em 2007.

Eram muitos homens trabalhando na linha ferroviária para trocar dormentes, limpar barreiras e, até mesmo, levantar um trem tombado. No início da construção da ferrovia, por volta de 1875, o trabalho era feito por escravos, ex-escravos ou imigrantes que tinham acabado de chegar ao país. No entanto, para realizar um trabalho que exigia muita força e proporcionava poucos cuidados, ainda na década de 1970, a maioria do trabalho realizado pelos ‘turmeiros’, como se costumava chamar os homens que faziam a manutenção da linha ferroviária, ainda era braçal.

lembrança_solda_de_trilhos_km_3000_linha

Hélio Tananusk cumpria essa função e começou a trabalhar aos 22 anos de idade por volta de 1970, seguindo na rede ferroviária até os 46 anos de idade, até 1996 ao se aposentar, quando a ferrovia sofreu o início do processo da privatização.

 

Natural da cidade de Paula Pereira, ele lembra que naquele tempo a linha ferroviária era uma das únicas opções no mercado de trabalho. “Para estudar era difícil. Eu não tinha condições de me deslocar até Canoinhas e concluir os meus estudos. Então, fui trabalhar”. O ex-ferroviário conta que quando começou não tinha a segurança que foi proporcionada anos depois, com a criação do sindicato.

 

“Tínhamos que comprar roupas, botinas e capacete. O serviço era braçal e cansativo. Só folgávamos no domingo. Quando tinha acidente, a gente trabalhava dia e noite, direto, sem parar. Somente anos depois, tivemos acesso às máquinas mecanizadas, como o guindaste para levantar os vagões tombados”.

 

Ele trabalhou em muitos locais da ferrovia, chegando até a divisa do Rio Grande do Sul com o Uruguai. A maioria dos ferroviários deslocava-se para várias cidades e, por vezes, recebiam até ajuda dos seus colegas, que residiam nas casas da rede ferroviária, pois precisavam passar a noite quando o trem quebrava. Tananusk lembra que trabalhavam em um grupo de aproximadamente cem homens quando havia emergência na linha do trem e após a regularização com o sindicato, faziam em média, um turno de oito horas de trabalho.

Alguns anos após assumir a ferrovia, a RFFSA exigia que os seus candidatos fizessem um concurso para poderem trabalhar e, assim, proporcionava  um curso de formação, bem como um acompanhamento médico aos seus funcionários ao longo do tempo. Entre inúmeras funções, que tiveram aprimoramentos, as histórias dos trabalhadores agora aposentados, guarda um misto de cansaço, ao lembrar do árduo trabalho e de saudade, por constatar que tanto esforço foi esquecido e tanto trabalho se transformou em abandono.

cardoso maquinista.jpg

Enquanto Tananusk fazia a manutenção da linha ferroviária, levantando trens, abrindo barreiras e trocando dormentes, havia também quem estivesse pensando em iniciar o seu trabalho para guiar os caminhos do trem. José Justino Cardoso começou a trabalhar na ferrovia como auxiliar de maquinista, em 1977.

 

Ele era policial militar, mas deixou a profissão para ser ferroviário, a mesma profissão que seu pai e irmãos seguiram. Por coincidência, ele relembra que o maquinista que o ensinou no trem também se chamava Justino. Entre tantas pequenas coisas que a vida proporciona, Cardoso lembra as amizades que fez ao longo do tempo e das dificuldades que também passou para fazer parte da equipe.

Para conseguir o emprego, ele participou de um concurso e depois de ser auxiliar, aprendeu a guiar o trem.

O maquinista, que guiou mistos (trens que transportavam vagões de cargas e pessoas) agora, com 70 anos de idade, foi um dos últimos maquinistas da região a se aposentar, em 1996. Recusou todas as propostas para mudar de cidade, e concluir seu tempo de serviço. O maquinista já sentia antes do momento da privatização que a ferrovia não estava tendo muita atenção. “Alguns anos anteriores, e até mesmo no final, o transporte era focado mais nos trens de cargas. Mas, muitas vezes, a manutenção na linha já estava precária e não recebia investimentos. Por cuidados, o trem precisava ter a velocidade de apenas 20 km/h, entre muitas curvas e limites, e algumas vezes, eu ficava muito tempo com os vagões vazios”, conta.

Anteriormente ao sindicato, Cardoso já fez setenta dias em um mês, intercalado entre as folgas. “Eu trabalhava direto, o salário era bom. Depois, com o sindicato, não podíamos fazer uma longa jornada. Era, no máximo, dez horas de trabalho e onze de descanso”. Para Cardoso, aqueles que chefiavam a linha eram muito exigentes. Não era permitido ao menos fumar perto de alguns escritórios, ou usar bebida alcoolica. O ex-ferroviário lembra que esse tipo de conduta impedia que os trabalhadores pudessem continuar no cargo.

O maquinista já foi passageiro. Com paciência e alegria, lembra das 33 horas de viagem que fez com a família até São Paulo, com o trem. “O meu pai era ferroviário, então tínhamos desconto na passagem. Nos vagões tinha restaurante, e eu e meus irmãos íamos viajando e brincando, jogando bolinha de gude enquanto os passageiros gaúchos cantavam suas músicas, acompanhados de uma gaita. Se a pessoa ao lado incomodasse, a gente podia escolher outro vagão, outro assento. Era muito bom viajar de trem. Tinha um grande espaço”, relembra.

Com sobrinhos maquinistas atuantes em Mafra, Cardoso, que guiou trens de até duas mil toneladas ou mais, agora carrega toneladas lúcidas de boas lembranças e saudade.

Uma locomotiva precisava de dois homens para guiá-la. É uma pena que o governo não tenha investido na ferrovia, como aconteceu com países de primeiro mundo”. Quando ainda havia passeios de Maria Fumaça, naquela época, o ex-ferroviário já prestava atenção em quem colocava a lenha pra queimar e nas dificuldades do trabalho. “O foguista, responsável pelo combustível da Maria Fumaça, viajava na chuva, sem cobertura, enfrentando o vento, geada ou frio. Ele tinha de aguentar”.

Quando Cardoso começou a trabalhar como auxiliar de maquinista, entre os desafios e perigos da profissão, um dos problemas principais era a falta de tecnologia para a comunicação entre ele e o maquinista para avisar o momento de atravessar túneis e pontes, ou parar em uma estação. Ele conta sua história com uma aparência feliz e surpresa, não acreditando em si mesmo, em como era possível realizar o trabalho que fez. Iluminou os caminhos escuros daqueles que precisavam de lentidão  com uma lanterna abastecida por querosene para ver o trem passar.

 

“Quando o trem era curto, sem muitos vagões, eu tinha que balançar a lanterna lentamente para que o maquinista desacelerasse. Movimentos rápidos indicavam que ele tinha que parar, mas quando o trem era comprido, eu tinha que desligar  a mangueira  do ar, que ficava interligada entre os vagões, e então abrir uma torneira angular para o maquinista saber que estava chegando e diminuir a velocidade”. Para isso, ele ficava pendurado no trem, algo que trazia muitos riscos. Pois após o procedimento, precisava pular do vagão. “Era noite quando eu estava trabalhando no Aquiles Stengel, prestes a passar por um pontilhão seco, com mais de vinte metros de altura e com pedreira em baixo. Estávamos manobrando ali na escuridão, eu só me abaixei para abrir a torneira angular e, sem saber, me joguei três metros antes de chegar no pontilhão. Quase cai de cima. O ar ficou aberto e o maquinista foi recuando. Eu deixei que o trem todo passasse.”

Cardoso lembra do acontecimento com gratidão, como quem ganhou uma nova data para comemorar o aniversário. Trabalhar com a sorte e os sinais deixava insegura a vida dos trabalhadores na época, que, mesmo com um salário ‘invejado’, davam sua vida pelos trilhos e corriam o risco, todo o dia, em perdê-la.

Entre diversos acidentes,  aconteceu com um colega de Cardoso, em Corupá, no Paraná, quando estavam descendo a Serra. Ele era o guarda-freio do trem. Segundo o ex-ferroviário, essa função também era arriscada, pois o trem somente tinha freio a vácuo. Para isso, eles tinham de correr por cima dos vagões. Cada vagão tinha um freio manual e,muitas vezes, não era possível ter a visão de quando ele entraria no túnel à noite. “Esse rapaz, que não lembro o nome ao certo, estava com três máquinas acopladas e foi passar de uma para a outra, em cima dos vagões. Esse procedimento era normal. Ele estava na segunda locomotiva, mas ao passar pelos vagões, caiu a mais de cem metros de altura e não resistiu”. Cardoso conta que foi a partir da década de 1980 que a comunicação entre os trabalhadores e os maquinistas  iniciou pelo rádio, poupando um grande risco para suas vidas.

Andando na linha reta de saudades e desejo que o tempo voltasse, para Cardoso o trem significou muito trabalho, mas também significou liberdade. Liberdade de um tempo que ele acredita não voltar, mas gostaria que fosse recuperado, pois para ele isso faz parte da história e não deveria ser esquecido.

Ao mostrar as fotos antigas suas e de colegas, o ex-ferroviário lembra-se de histórias que serão infinitas, não por somente estarem, algumas ainda visíveis aos nossos olhos, mas por que fez dessa profissão o legado da sua família, das suas memórias que serão recontadas em todas as gerações, em fotografias que eternizam memórias, sorrisos, tristezas e força de uma época que o país se desenvolveu, mas também se vendeu quando a privatização de diversos órgãos ou empresas estatais tiveram início já na década de 1990.

Antonio Xavier Paes, que iniciou o seu trabalho também cedo, na década de 1960, guarda muitas memórias e ainda representa o sindicato da rede ferroviária em Porto União, o lado direito da estação de trem, que divide as cidades. O relógio visto de longe, ao alto da parede, que curva uma estação à outra não parece apagar as memórias do ex-ferroviário, que se orgulha do seu trabalho e em representar a memória em diversos eventos que homenagearam os trabalhadores no sul do país. Ele afirma que já foi procurado por muitos historiadores, jornalistas, alunos, professores e curiosos. Sempre com uma disposição e também lucidez, lembra que naquele tempo, quando fez o concurso para entrar na rede ferroviária, mal sabia o dia da inscrição. Chegou somente no dia do concurso, mas por sorte - como ele afirma - conseguiu realizá-la. 

Antonio Xavier Paes

Acreditando que passou em primeiro lugar, quando soube da aprovação foi diretamente na estação confirmar. Ele mal sabia os caminhos da cidade, mas seguiu a linha do trem para chegar a um depósito, que ficava próximo ao atual terminal urbano de Porto União para confirmar com o responsável.

 

Quando seguiu as linhas do trem para conhecer uma cidade que ainda estava se desenvolvendo, talvez não soubesse o quanto sua jornada o levaria em diversos lugares, como em Paranaguá. Continuou, então, seguindo a linha. E o trem.

Ele cuidava da manutenção dos trens, verificava o seu estado, consertava o que era necessário. Durante muito tempo, esteve à disposição para as emergências quando algum acidente acontecesse. Foi um dos primeiros a cuidar do sindicato dos ferroviários aqui na região, e ainda continua nessa função. Função que agrega pouco ao seu salário de aposentado, mas que ele cumpre com muita disposição para ajudar ex-ferroviários ou seus familiares que ainda precisam lutar por seus direitos, quando não foram devidamente atendidos na época.

Inúmeros detalhes revelam o ambiente do Sindicado dos Ferroviários (Sindifer), cheio de memórias nos quadros que trazem fotos antigas, medalhas e homenagens que compõem a sala, pouco modificada com o passar dos anos. Paes é também um guardião da história, quando mostra com orgulho, pastas cheias de lembranças, convites para eventos homenageando a ferrovia e recortes dos jornais que contaram a sua história. O local, no qual ele passa a maioria das tardes, era um consultório odontológico no passado. Para ele, a ferrovia é muito importante, pois marca a história de um povo e não pode ser esquecida. Suas memórias e as de tantos ferroviários são de histórias que, quando ouvidas, ainda não parecem tão distantes - apesar dos quase vinte anos passados.

Galeria de Fotos
bottom of page