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Enquanto era sertão

A terra do Contestado e a criação da Ferrovia tomou o espaço do Sertão da região de União da Vitória e Porto União, mas não apagou as memórias. Dividiu-se entre Paraná e Santa Catarina com as linhas do trem depois de uma guerra sangrenta que deixou, aproximadamente, 20 mil mortos. Quando o escritor Guimarães Rosa diz que “o sertão é dentro da gente”, cada dormente pregado no chão relembra que as marcas não podem ser apagadas.

O início da construção da estrada de ferro que ligava Itararé, em São Paulo até o Rio Grande do Sul se deu em 1896 com a autorização do governo brasileiro e foi construída pela empresa norte-americana Brazil Railway Company, que pertencia a Percival Farquhar, dono também da Southern Brazil Lumberand Colonization Company, empresa responsável pela extração de madeira. Em Porto União da Vitória - antigo nome da cidade, a linha férrea foi inaugurada  em 1906.

Para que a construção da ferrovia acontecesse, foi necessário desapropriar uma faixa de terra, de aproximadamente 30 km de largura. No contrato firmado com a Brazil Railway, o governo declarou que ninguém ocupava aquelas terras, como se elas fossem devolutas. No entanto, lá havia sertanejos, agricultores e madeireiros que se sentiram prejudicados, pois a Lumber passou a extrair madeira das suas terras e exportá-las para os Estados Unidos.

O conflito violento, que resultou em uma guerra entre classes, tendo como um dos líderes o monge José Maria de Santo Agostinho, arrastou os sertanejos e o povo que queria o seu espaço, em uma disputa de terras contrariando a ordem republicana, os coronéis, a polícia, o exército e a companhia ferroviária norte-americana, Brazil Railway Company.

Ilton César Martins, professor de História na Unespar de União da Vitória, lembra da recente rememoração do centenário da Guerra do Contestado, em 2016. “É uma rememoração. É um fato histórico e não há o que comemorar, pois se trata de um massacre que foi contra a população sertaneja da região. É um fato extremamente importante da história do Brasil e muitos ainda  desconhecem o que foi a experiência da guerra.”

Martins explica que a Guerra do Contestado pode ser entendida por uma dupla relação de interesses. A primeira partia do clube de engenheiros do Brasil. Teixeira Soares, um importante representante do grupo, construiu a estrada de ferro que ligava Curitiba ao litoral paranaense e fazia parte dele.    

O clube de engenheiros pensava na possibilidade do desenvolvimento econômico que a construção disponibilizaria a essa região. Por outro lado, além de pensar no crescimento econômico, o governo tinha outro interesse estratégico muito significativo: “Basta lembrarmos o que é oeste do contorno da região da ferrovia, pois ela ainda estava em litígio com a Argentina. O governo imperial tinha a ferrovia também como uma garantia de legitimidade de um território”.

A tentativa de formar um novo Brasil também se mostrava a partir da construção da ferrovia:

Com a convocação para a maioria dos povos imigrantes trabalharem na ferrovia, considerando que havia passado apenas 25 anos da abolição da escravidão no Brasil, é possível pensar que o governo realizou a tentativa de apagar esse fato histórico e triste do país.

“Em todos os países republicanos, o hino da República é o hino oficial. O Brasil é o único que canta um hino imperial. O hino da República foi feito quase dois anos após a abolição da escravidão. Quando ouvimos “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre País” no hino da República, logo nos questionamos: Como é que eles podem afirmar que não acreditavam na escravidão? A Guerra do Contestado resolve muito bem isso. As guerras eliminam a população indesejada, os indígenas e os negros, afirma Martins”.

Mesmo com interesses que envolviam o capital - tanto para o governo como para a ferrovia, segundo Martins, é preciso separá-los do enfoque moral. “Não existe como falarmos da história do Contestado sem falarmos da ferrovia e de todos os transtornos e mudanças no ritmo de vida e forma de organização moral, social e religiosa. Ao mesmo tempo, a ferrovia acaba dinamizando os circuitos econômicos e com o passar dos anos, se constitui como uma referência para a organização da vida social e econômica, contribuindo para o desenvolvimento de transporte de pessoas, cargas e a construção da cidade”.

Vitor Marcos Gregório, professor do Instituto Federal do Paraná em União da Vitória, guarda um acervo com documentos históricos da ferrovia que preenchem uma sala. Desenvolvendo um projeto com alunos bolsistas do IFPR, o professor paulista está em União da Vitória há três anos e acredita que a história sobre o Contestado deveria ser tratada de uma maneira mais aprofundada.

“Quando cheguei aqui, ouvi dizer que foi uma guerra de fanáticos, mas quando você recua, percebe que o caboclo que estava aqui era de família de ex-escravos ou índios que estavam fugindo do Estado brasileiro e então, se viram perseguidos novamente”.

 

Para ele, chamar os caboclos de fanáticos é historicamente impreciso, pois eles viviam isolados e acreditavam na cura e nos ensinamentos de um monge, que era uma das únicas bases que eles tinham quando eram esquecidos. Ele explica que o governo não sabia da existência desses povos quando permitiu que as terras fossem utilizadas para a construção da ferrovia.

Esse ano, ele e o grupo de alunos apresentaram o acervo em Pernambuco e consequentemente, receberam um convite para apresentá-lo  na Colômbia, em 2019.  O acervo tem previsão para ficar disponível ao público no ano que vem. Entre os documentos, que em sua maioria eram escritos com caneta de bico de pena em francês e estão guardados com muito cuidado, se destaca o qual explica a situação dos primeiros trabalhadores da ferrovia.

 

A folha de pagamento de operários e empregados é de 1910, dois anos antes da guerra do Contestado. O documento traz o nome dos operários e o quanto eles deviam para a companhia.

 

“Os homens vinham de lugares distantes para morar no meio do mato para fazer a linha. Tudo que eles consumiam, eles compravam da própria empresa. Muitas vezes, o que eles ganhavam da empresa não era o suficiente para pagar a dívida que tinham com a empresa. O problema é que, como eles ganhavam menos do que gastavam, não podiam ir embora. Isso poderia ser uma escravidão por dívida”, explica.

 

Sendo assim, o professor acredita que quando esses trabalhadores foram demitidos com o início da guerra do Contestado, eles também se rebelaram. “Eles se uniram aos que perderam terra por conta da ferrovia e claro que iriam lutar também,  pois foram explorados o tempo todo. Esse documento prova como isso funcionava”. Entre os documentos únicos, destacam-se a organização da compra de materiais para a construção da ferrovia, as plantas do prédio que seriam a estação ferroviária em Curitiba e os cartazes comemorativos.

Folha de Pagamento dos funcionários - Capa
Folha de Pagamento dos funcionários

Para o historiador Rafael José Nogueira, a ferrovia do Contestado é uma história inconclusa. Ele acredita que o patrimônio histórico tem função especial para lembrar o que a República quis silenciar. “Quem não sente nada quando anda pela região do Contestado está num nível superior, que conseguiu dessacralizar o misticismo da região. A memória é poder, está entrelaçado com ele. Mais do que isso, a memória está ligada ao patrimônio, a preservação e o fermento que faz crescer essa relação é a importância que damos a memória e ao patrimônio”.

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